Conto: A Carta Perdida

 



A chuva tamborilava nas janelas da Livraria Velha quando Ana entrou, sacudindo o guarda-chuva. O sino da porta tilintou, e o Sr. Miguel ergueu os olhos de trás do balcão, murmurando um "boa tarde" rouco. Ela, sem responder ou prestar atenção, foi direto para a seção de romances usados, os dedos deslizando pelas lombadas empoeiradas. Então, algo caiu de um livro — uma carta amarelada, selada com cera quebrada. Hesitou, mas a curiosidade venceu. O envelope foi aberto, e as primeiras linhas surgiram: "Se você encontrou isso, é tarde demais para voltar atrás."

O coração disparou sem que ela soubesse o motivo real. Uma carta qualquer, talvez esquecida por um antigo leitor naquele volume velho, não deveria ser nada demais. Algo para ser recolhido e entregue ao dono da livraria, que talvez conhecesse o último leitor daquelas páginas. Mas aquelas palavras tinham apertado um botão mágico no subconsciente. Um gatilho havia sido acionado, fazendo soar o alarme.

"É tarde demais", ecoava em seus ouvidos. Tarde demais? Como assim? O que tudo isso significava? Instintivamente, olhou para trás, os olhos fixando-se no Sr. Miguel, que a encarava. Congelou. Não havia como medir quanto tempo durou aquele olhar, mas certamente pareceu eterno. A sensação era de ter sido pega fazendo algo errado. A carta foi escondida atrás de si. Por que ele estava olhando?

O Sr. Miguel desviou o olhar e pegou um livro empoeirado numa prateleira qualquer. Paralisada, ela observou o senhor de pouco mais de 60 anos se mover pela livraria. Ele voltou despreocupadamente para trás do balcão, continuando seus afazeres.

Um suspiro de alívio escapou. Talvez a imaginação estivesse pregando mais uma peça. Aliás, isso não era novidade. Ultimamente, aos vinte e poucos anos, perder-se em devaneios tinha se tornado comum — o preço de viver só, talvez. A carta! Colocou-a dentro do livro, o cheiro de mofo subindo das páginas, e seguiu para uma das mesas no canto da livraria, reservada aos poucos leitores de livros físicos que resistiam à realidade tecnológica. O local, mais discreto, oferecia a privacidade necessária para analisar a situação.

O livro foi aberto, a carta desdobrada novamente. Uma linha no final, quase apagada, dizia: "Procure onde o sol não toca." Outro mistério! A mente fértil se acendeu de excitação. Agora, tinha certeza de que aquilo não era por acaso. Alguma coisa estava acontecendo ali. Não podia ser coincidência.

Mas a frase não fazia sentido. Onde o sol não toca? Ergueu o olhar, imaginando o sol e suas bordas. Não toca? O quê? O sol não toca nada! A sensação de ser observada persistia. Estava fora do campo de visão do Sr. Miguel, mas será que ele ainda estava lá? Os olhos correram pela livraria, confirmando que estava sozinha. Voltou à carta e releu. Não havia mais nada escrito. Espere, na parte de trás, um nome: Miguel!

Deu um salto e ficou de pé. Correu até a porta ao lado do balcão, agora vazio. Apenas o livro empoeirado que o Sr. Miguel havia pego restava ali. Fixou o olhar nele, um calafrio subindo pela espinha. Em letras grandes, o título gritava: Procure onde o sol não toca.

As mãos tremiam ao pegar o volume. Ao abri-lo, uma página caiu — outra carta.

Ana saiu da livraria quase correndo, a chuva ainda estava caindo fina. Só parou ao trancar a porta de casa, o coração acelerado. Será que tinha sido seguida?

O apartamento de Ana não era grande, mas certamente refletia a sua personalidade. Vários livros espalhados pelos móveis já demonstravam sua paixão pela leitura. Alguns romances clássicos, biografias de pessoas bem conhecidas e, principalmente, romances policiais. Os mistérios a fascinavam.

Os livros trazidos da livraria estavam apertados contra seu peito quando ela se jogou na cama, exausta de tanta excitação. A adrenalina ainda circulava forte nas suas veias. Um turbilhão de informações a serem processadas.

Era a primeira vez que tinha ido àquela livraria em um bairro que não era próximo do seu apartamento. A fachada tinha chamado sua atenção ao passar de ônibus pela frente em um trajeto que normalmente não fazia. Guardou aquela imagem na mente com o desejo de um dia conhecê-la. Era um prédio antigo, bem diferente dos imóveis do seu lado da cidade. Tinha um ar de nostalgia que há muito se perdera. Talvez por ser um bairro mais antigo, a beleza do passado havia sido preservada. 

Uma placa, próximo à porta, que conseguiu ler de relance, havia despertado ainda mais seu interesse. Estava escrito: "Sua história está aqui".

Isso! Está provado que não se trata de coincidência. Por isso a ideia de ir àquela livraria tinha ficado martelando na minha mente. Era aquela frase!

Se alguém a tivesse seguido não era possível saber mas, pelo menos por enquanto, estava segura em casa. Olhou para o livro que agora estava em cima da cama com a última carta dentro. A carta! O que tem nela? Abriu e leu o que estava escrito, à mão, em um papel antigo:

"Obrigado por não desistir de mim. Sabia que, mesmo que demorasse, você iria me encontrar. Que saudades... Estou bem, mas sinto muito sua falta. Quando nos encontraremos de novo? Espero que muito em breve, minha amada. Não se preocupe, nosso segredo permanecerá guardado comigo. Volte! Com Amor, M."

O que significava tudo aquilo? 

A letra... deixe-me ver: era a mesma! Alguém estava por trás de tudo isso. Assinada com um “M”. Claro! O Sr. Miguel! Ele deve ter armado tudo isso para me assustar. Isso não tinha qualquer graça. Amanhã retornarei lá e vou lhe dizer umas boas verdades! Ele tem muito a se explicar.

O dia nasceu novamente chuvoso, escuro, frio e, com certeza, isso não era animador. Mas Ana não deixaria barato aquela peça que lhe fora pregada no dia anterior. Aquele senhor ia ter que lhe dar boas razões para ter feito isso.

No caminho, sua mente ia revisitando cada acontecimento. Algumas coisas não faziam sentido. Porque ele iria fazer isso com uma desconhecida? Como ele sabia que eu iria reagir assim ao ver a primeira carta? Aos poucos as certezas iam diluindo e as dúvidas se multiplicavam. 

O ônibus foi se aproximando do local da livraria. A parada ficava a dois quarteirões de distância. O ônibus parou e Ana desceu, os pensamentos girando. No caminho a pé ela percebeu que algumas coisas pareciam diferentes do dia anterior. Não sabia exatamente o que era, mas tinha a nítida impressão de que o lugar estava diferente, as cores mais vivas, algumas fachadas... Virou a esquina e parou em frente à livraria. Mas... onde estava a livraria? 

Não estava lá!

O prédio parecia o mesmo. Ela, instintivamente, esfregou os olhos para ver melhor. O local era esse mesmo? Olhou ao redor e reconheceu tudo. Sim, ela estava no lugar certo. Mas então, onde a livraria estava? 

No local de antes, as cores haviam mudado. Agora o prédio parecia mais novo, tons claros em uma porta de entrada azul. Havia uma placa escrito: Lar de Descanso. 

Que lugar é esse?

A porta azul estava aberta e, sem conseguir pensar direito, Ana entrou. Não havia livros, balcão, mesas de leitura, nada. Não era possível... 

Um estalo seco, um cheiro forte. Ana desmaiou.

"Ana! Ana! Ana!" - Uma voz masculina chamava. 

O cheiro de éter misturado ao perfume distante de livros antigos. 

"Você está bem?" - disse a mesma voz.

A tontura bloqueava sua compreensão e, aos poucos, ela foi recobrando os sentidos. 

"Tenha calma, fique tranquila" - A voz masculina mais uma vez se fez ouvir. 

As imagens começaram a reaparecer. Era um quarto. Não o seu quarto. Tinha as mesmas cores do prédio que acabara de entrar. A porta do quarto em que estava também era azul. Ela percebeu que aquele quarto era “o seu quarto” dentro daquele local. A memória, aos poucos, ia voltando. Percebeu que estava sentada numa cadeira de rodas , viu um homem vestido de branco à sua frente. No jaleco: Enfermeiro Júlio.

"Ana, você me reconhece? Sou o seu enfermeiro, o Júlio" - disse ele.

Suas mãos... estavam diferentes, enrugadas. De relance viu mechas brancas no seu cabelo… 

Sem querer falou - “onde ele está?”

"Quem?" - perguntou o enfermeiro.

“Ele!” - Ana falou aflita.

O enfermeiro gentilmente pegou uma foto na cabeceira da sua cama e lhe mostrou: lá estava ela, uns 40 anos mais velha, abraçada com ele: 

Sr. Miguel.

 Denis Job em 03/2025


Comentários

Gostei, vc escreve muito bem 💞
Anônimo disse…
ABSOLUTE CINEMA AMEI ESSA MARAVILHA DE LIVRO<3<3<3

Postagens mais visitadas