Uma Gota de Ternura
A história de Laura, é uma narrativa introspectiva e sensível que explora temas como autonomia, solitude, aceitação da morte e a construção de uma vida conforme os próprios termos. Ele se encaixa no gênero do conto realista contemporâneo, com fortes tons psicológicos e existenciais, semelhante a obras de autores como Alice Munro, Lorrie Moore ou até mesmo Clarice Lispector, no que tange à profundidade emocional e à construção de personagens femininas complexas.
Uma Gota de Ternura
Não há um mal que não traga um bem. Foram estas, precisamente, as palavras que vieram à mente de Laura no momento em que abriu aquele exame, meses atrás. O resultado estava ali estampado, e embora não fosse médica, não havia dúvidas… ela estava com câncer. E se essa notícia, para a maioria das pessoas, poderia ser um momento de profundo desespero, ela, ao contrário, estava tranquila. Talvez porque, de alguma forma, ela já soubesse que seria assim; afinal, não era o primeiro caso na sua família. Os sintomas que vinha apresentando, por sua vez, já a tinham deixado bem desconfiada. Não havia, portanto, motivo para desespero. Agora, era encarar a nova realidade descortinada e seguir em frente.
Laura era uma bela mulher, na casa dos 55 anos, sempre muito elogiada por ser elegante, inteligente e bem relacionada. Estava aposentada após longos anos de uma carreira sólida, até porque ela havia dedicado os últimos trinta e cinco anos de sua vida exclusivamente ao seu trabalho. Era seu foco. Ser bem-sucedida tinha sido quase uma obsessão, e ela realmente podia se orgulhar de ter atingido seus objetivos, inclusive financeiros. Morava num bom apartamento, um por andar, com espaço suficiente para uma grande família… que ela não tinha. Morava só.
Tinha um filho, já adulto e casado, de um relacionamento rápido do passado. Rápido como tantos outros, já que ela nunca tinha tempo para se dedicar aos relacionamentos, que demandam um esforço emocional que ela não estava disposta a despender. Sempre estava muito ocupada.
Seu filho morava em outro país e, a exemplo da mãe, com quem aprendera grande parte de como hoje encara a vida, não mantinha muito contato com ela, além das obrigações emocionais suficientes para apaziguar, de certa forma, algum sentimento de culpa que porventura aparecesse após alguns longos períodos sem contato. Essa falta de contato não poderia ser classificada como um problema para ela. De fato, seu relacionamento com ele sempre foi frio, burocrático; nunca tinha deixado lhe faltar nada, proporcionou bons colégios, roupas, estrutura e… só. Nada além disso. Ela não era realmente uma mulher dada a demonstrações de afeto ou o que o valha. Ele, naturalmente, sentiu falta por um tempo, até que se acostumou e aprendeu que as coisas deveriam ser assim mesmo. Seguiu sua vida, por fim.
Talvez tudo isso explique, de alguma forma, a maneira como ela reagiu ao resultado daquele exame. Era um câncer agressivo; ela sabia. Já havia pesquisado sobre o assunto. As suas chances, a partir daquela confirmação, não eram das melhores.
Ela não podia se queixar da vida. Embora, no campo afetivo, algum observador externo pudesse julgá-la como uma pessoa fracassada, isso, de fato, não concordava com a sua visão de mundo. Laura não se sentia assim; ao contrário, viveu sua vida conforme suas convicções. Relacionamentos nunca foram sua prioridade, e ela estava tranquila em relação a isso. Ao longo da sua trajetória, teve vários companheiros: uns passaram mais tempo ao seu lado, outros foram bem passageiros, mas todos estiveram onde deveriam estar, ou seja, por perto, mas nem tanto.
Ela gostava mesmo era de viajar, conhecer o mundo, seus lugares, pessoas diferentes, experimentar sem parar. E isso ela fez muito. Uma grande parte de tudo que ganhou — e não foi pouco — foi gasta em incontáveis viagens. Conheceu os quatro cantos do mundo. Fez inúmeras aventuras, desde cruzeiros, passando por safáris, até viagens a lugares exóticos. Sempre viajava sozinha, pois assim se sentia livre para aproveitar tudo que os novos lugares tinham a oferecer.
Foi na última viagem que ela sentiu dores estranhas e um mal-estar que acendeu o sinal de alerta. Ela se conhecia bem, afinal, como uma mulher sozinha, havia aprendido a se virar e a não depender de ninguém. Reconhecia os sinais de alarme do próprio corpo, o que a livrara de grandes apuros em várias situações — como aquela vez em que, ao primeiro desconforto, procurou atendimento médico e evitou as possíveis complicações de uma apendicite. Nessas raras ocasiões de fragilidade, contava consigo mesma, com alguns poucos amigos que não desapareciam nesses momentos e com serviços profissionais. Se fosse necessário, contratava imediatamente um serviço de cuidadores de enfermagem, e o problema estava resolvido. A vida precisava ser prática!
Mas, dessa última vez, percebeu logo de cara que algo estranho e muito diferente estava acontecendo e que, talvez, não fosse ser tão simples consertar as coisas. Assim que retornou, procurou um bom especialista, e agora tudo estava esclarecido.
Laura era de uma geração educada para casar, ter filhos, cuidar da família e, na velhice, ajudar com os netos. Romper com esse roteiro lhe custou muito. Embora tenha perdido o pai ainda jovem, enfrentou as cobranças de sua mãe, que não teve a oportunidade de ter outros filhos e, por isso, depositava nela sua frustração por não ter seguido, ela mesma, o roteiro predefinido pela sociedade. As cobranças eram constantes, e os confrontos, inevitáveis. A mãe nunca compreendera as razões das escolhas dela. Morreu há pouco mais de dez anos, certamente frustrada com a própria vida e com a da sua única filha, que não seguiu os padrões. É difícil confessar, mas, para Laura, foi um alívio. Agora ela podia cuidar da própria vida sem as cobranças e a necessidade de explicações constantes. Talvez essa tenha sido a última amarra que existia, visto que seus amigos jamais teriam coragem de confrontá-la em suas escolhas, e os demais parentes não tinham acesso a ela.
Essa fase de sua vida, já com a distância do filho adulto, foi, para ela, a melhor. Sentia uma leveza imensa. Seu trabalho era realizado com a facilidade de quem se dedica ao que ama, e o restante do seu tempo era exclusivamente dela. Não se sentia sozinha; pelo contrário, era dona do seu tempo.
E assim foi durante toda essa década, até aquele dia do diagnóstico, alguns meses atrás. O tratamento preconizado a obrigaria a ficar internada. A quimioterapia seria agressiva. Laura tinha mergulhado, como fazia em tudo na vida, em dezenas de estudos científicos que tratavam do tema da sua doença.
Havia revirado cada artigo existente e conversado com todos que realmente entendiam do assunto. As chances eram mínimas. O tempo… curto.
Seu médico não queria perder tempo. Tempo…
Não. Laura não faria isso. Ela não perderia o controle do seu próprio destino. Não naquela altura da vida. Não lutara contra tudo e contra todos para, no final do jogo, abrir mão do que acreditava.
A porta do quarto se abriu, retirando Laura daquele transe de pensamento que deixara seus olhos fixos por tanto tempo. A doença havia avançado como previsto. A enfermeira entrou no quarto, gentil e atenciosa, prestava um atendimento compatível com o valor que lhe fora pago. Acrescentou mais uma ampola de medicação à bolsa de soro que injetava, em seu acesso central, o líquido que lhe garantia conforto. Laura já não falava mais. Restavam apenas os pensamentos.
Os três últimos meses, desde o diagnóstico, foram vividos com muita tranquilidade. Na primeira semana, ela cuidou da parte burocrática: contas de banco, documentos. Conversou com seu advogado, nomeou um procurador, fez o testamento. Deixou tudo encaminhado de tal forma que não houvesse mais qualquer necessidade de se preocupar com essas questões. Tinha dinheiro suficiente para os cuidados médicos de que precisaria, e já estava tudo ajustado.
Nas semanas seguintes, criou uma rotina de acordar cedo, se alimentar e caminhar na praia. Sentava-se debaixo de uma antiga árvore e lia seus autores preferidos. O fone no ouvido tocava sua playlist favorita, com as belas músicas de antigamente. Não contara nada da sua condição a absolutamente ninguém, nem ao seu filho. Quando o sol começava a esquentar mais do que ela gostava, voltava para casa e se dedicava a tocar seu piano, uma paixão secreta que poucos conheciam. Poucas pessoas a tinham ouvido tocar, e quem conviveu com ela jamais imaginaria o quanto era boa naquilo. Tocava com desenvoltura obras clássicas e se dedicava, com muito cuidado, a tocar ‘Clair de Lune’, de Debussy, sua preferida. Foi em um final de tarde, tocando essa música, que percebeu que estava próximo. Ligou para a cuidadora e foi se deitar na cama que havia preparado em um quarto modificado para aquela fase da doença. Deitou-se e aguardou a chegada da enfermeira. Dali não se levantaria mais.
Agora, o som do piano tocava em caixas de som que ela havia colocado nos cantos do quarto, e ela podia acionar a música por um pequeno controle ao lado da cama.
E foi isso que a enfermeira fez depois que acrescentou a medicação. Naqueles últimos dias, aprendera a conhecer um pouco mais a paciente que, mesmo não falando, expressava-se muito bem com o olhar. Debussy começou a tocar. Ela sentou-se ao lado da cama, e trocaram um olhar. Foram poucos dias de convivência, mas suficientes para perceber que ali não se tratava de uma pessoa comum. Laura não reclamava de nada. A enfermeira sabia que a paciente sentia muitas dores e que a medicação, por mais forte que fosse, não era capaz de inibir todos os sintomas. Mas ela não se queixava. Enfrentava tudo com uma altivez que a enfermeira jamais vira. Serena, firme. Nenhuma visita apareceu nesse período, mas ela nunca fizera qualquer comentário ou reclamação. Apenas lhe pedira que lesse em voz alta os livros que separara com antecedência para aquele período. E só.
Naquele momento de silêncio, embalado por aquela linda música, a enfermeira lembrou-se da última palavra que ouvira da paciente antes de sua voz calar: Consegui!
Os olhares das duas estavam fixos. A enfermeira pressentia que não demoraria a acontecer; poderia ser a qualquer momento. O olhar de Laura aos poucos foi mudando; uma espécie de ternura apareceu. Não havia como explicar direito, mas mudara, sim. Não era mais possível fazer perguntas. Repentinamente, uma gota de lágrima desceu. Apenas uma. Laura fechou os olhos e nunca mais os abriu.


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