Conto: O Relógio da Parede

     


    Clara amava seu avô e a falta dele doía profundamente na sua alma. Aqueles últimos dias tinham sido muito difíceis desde que tudo aconteceu. Era a primeira vez que ela entrava na casa que lhe fora deixada como herança. 

Ela insistiu em ficar ali no quarto dele sozinha, observando tudo mais uma vez. As coisas estavam exatamente no mesmo lugar daquilo que estava gravado na sua memória: o mesmo lugar, que incontáveis vezes havia procurado avidamente assim que entrava naquela casa antiga. Era o seu "castelo". Ali, ela havia vivido tantas histórias em sua mente, narradas pela voz do seu querido avô, que ainda ressoava em seus ouvidos. Ele era um verdadeiro contador de histórias. 

Sentiu um aperto no coração quando se deu conta de que aqueles momentos não iriam mais se repetir. Foi tudo tão de repente. Ela estava longe e não conseguiu se despedir. Havia tanto a ser dito... 

Seus olhos percorriam o cômodo relembrando cada detalhe tantas vezes observados. A velha cadeira de madeira onde ele sentava, a mesinha antiga, os poucos livros. Ela sempre pensava de onde poderiam sair tantas histórias já que seu avô raramente era visto com livros nas mãos.  Aquilo era um mistério. Clara levantou os olhos e viu na parede, em frente à cama, o relógio de parede que ele tanto amava. Era um lindo relógio de madeira escura com ponteiros dourados. Tinha um grande pêndulo dentro de uma porta de vidro. Seu avô parava o que estivesse fazendo para contemplar o som do pequeno sino que tocava de hora em hora. Não era raro vê-lo com ar distante olhando fixamente para aquele relógio.

Mas espere, o relógio estava parado! 

Em todos esses anos, ela nunca tinha visto aquele relógio parado! Ele não deixaria isso acontecer, e certamente não deu tempo dele perder a corda desde que ele se foi. 

Como isso foi possível? 

Clara levantou e se aproximou do relógio. Chegando perto, percebeu que a pequena porta de vidro, que protegia o pêndulo, estava aberta. Se aproximou mais, abriu, e pôde ver que  atrás do pêndulo, em um dos cantos, havia dois objetos: um pequeno bilhete dobrado e uma chave.

Não fazia sentido aqueles objetos colocados ali. O que seria aquele bilhete? Pegou cuidadosamente a chave com o bilhete, abriu e leu:

"Clara, você sabe o quanto te amei. Sabia que você o encontraria antes de qualquer pessoa. Não era justo partir sem lhe contar o segredo. A chave está na sua mão."

Ao ler o bilhete ela empalideceu. Podia escutar a voz rouca que tantas vezes ouviu ao lado da cama. Era ele lhe dizendo suas últimas palavras!

As lágrimas brotaram imediatamente dos seus olhos. Uma mistura de saudade e dor. Ele realmente a conhecia, sabia que aquela porta aberta do relógio não passaria despercebida, principalmente, se o relógio estivesse parado. 

Seu avô queria lhe dizer algo na sua despedida, mas ela não estava ali. Um segredo! O que poderia ser?

A chave!

Clara olhou rapidamente para ela. Era uma chave antiga, diferente das demais que já havia visto pela casa. Era menor que as de uma porta. Parecia ser antiga. De onde poderia ser?

Ela olhou pelo quarto em busca de respostas. O guarda roupa estava com as chaves, não via caixas, cofres, ou qualquer coisa que pudesse ser aberta. Seu avô não guardaria um segredo em um local fora daquele quarto, e isso ela tinha certeza.

Embaixo da cama!

Se abaixou mas não tinha nada. Procurou sob o colchão, dentro das portas e… nada! 

Aquilo não fazia sentido.

Sentou na antiga cadeira do seu avô para pensar. Um segredo…

Eles não tinham segredos. Conversavam horas a fio e ela poderia jurar que sabia tudo sobre ele. Mas agora, depois de ler o bilhete, será que existia alguma coisa que ele lhe escondera todo esse tempo?

Mas então, de onde seria essa chave? Ela percorreu mais uma vez os olhos pelo quarto em busca de uma pista,  nenhum sinal!

A oficina da garagem, claro! Seu avô nunca a levava lá porque dizia que só tinha coisa velha guardada; ela só entrara ali quando muito pequena. Só poderia estar lá!

Ela saiu apressada do quarto, atravessou o corredor que levava à cozinha em busca da passagem para a parte de trás da casa. Ao sair, já dava para ver a porta de madeira antiga da velha oficina do seu avô, que ele dizia estar desativada há anos. Girou o trinco na esperança de não estar trancada. A porta abriu com um pequeno rangido. 

Fazia muitos anos que ela não entrava ali. Realmente estava cheia de coisas velhas entulhadas, mas espere! Não lembrava daquela outra porta ao fundo. Aparentemente a oficina era dividida em dois cômodos e aquela outra porta dividia os ambientes. Como ela nunca tinha prestado atenção nisso? Talvez algum móvel ficasse bloqueando a visão desta porta e agora, por algum motivo, não estava mais lá…

A segunda porta também estava aberta. Parece que seu avô queria mesmo que ela descobrisse algo, pois certamente, aquelas portas deveriam permanecer fechadas. 

Entrou no segundo cômodo e qual foi sua surpresa quando viu que, diferente do anterior, ali estava um escritório limpo e arrumado! Era como um esconderijo que seu avô guardava escondido de olhos curiosos. Mas, porque?

Não era muito grande. Tinha uma poltrona confortável em um dos cantos, certamente um local de leitura, pois ao lado tinha uma estante com uma infinidade de livros. Alguns belos quadros na parede, um tapete vermelho no centro dando, ao lugar todo, um tom aristocrático. Do outro lado, sob um janela com vidros jateados (certamente para bloquear olhares indesejados) havia uma grande escrivaninha de um tipo que não existe mais: toda de madeira escura, com uma tampa corrediça que descia em diagonal e que bloqueava o acesso ao que estava dentro. 

Tentou abrir a tampa que, com um pouco de esforço, subiu desvendando o que tinha dentro. Uma velha máquina de escrever daquele modelo que certamente já saiu de linha há muitos e muitos anos. 

Seu avô jamais tinha feito qualquer comentário sobre isso. A existência desse escritório era totalmente desconhecido por todos. E aquela máquina antiga? Porque seu avô não tinha lhe contado isso antes?

Ao lado da escrivaninha, ela viu um armário escuro, também de madeira, mais ou menos da sua altura e com boa largura. Não dava para ver o que tinha dentro das suas duas portas pois era todo fechado. Ela tentou abrir, mas estavam trancadas. Não tinha chave. Chave? Será…

Pegou imediatamente a chave que havia colocado no bolso e tentou colocar na abertura da fechadura. Entrou! Era dali! Com dois giros destrancou a porta e abriu. 

Dentro do armário, empilhadas, dezenas de caixas de papelão deitadas. Todas mais ou menos do tamanho de uma folha de papel. Puxou a primeira e viu que tinha na tampa um nome escrito: “Folhas de outono”. Ela lembrou desse nome! Seu avô uma vez lhe contara uma história que tinha exatamente esse nome. Abriu a caixa com cuidado e lá estava: datilografada em folhas soltas. Foi folheando as páginas soltas, o cheiro de papel velho enchendo o ar.

Então era isso! Todas aquelas histórias que por anos ela havia  escutado sentada à beira de sua cama estavam registradas ali. Seu avô era um escritor e tinha lhe deixado de herança o registro de anos e anos de escrita solitária nesse seu esconderijo. 

Um esconderijo que agora, seria seu!


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